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quinta-feira, dezembro 18, 2008

Desmoronamentos



"A sombra sofre também dos padecimentos do corpo, a tala numa perna partida implica também a sombra da tala na sombra da perna; é por isso que eu fujo da luz." Explicou ela. "Só saio a esta hora, quando as sombras desmoronam a cidade, e, por breves momentos, o mundo é um lugar seguro para a minha sombra. Se ela não sofrer, nem males de espírito, nem males da carne, é possível que eu não sofra também."


Era esta a justificação para nos encontrarmos assim fugidia e furtivamente no mesmo lugar onde nos havíamos visto pela primeira vez.


Ela enlaçou-me nos seus braços, beijou-me os lábios e perguntou "Amas-me?"


"Amo-te como nunca acreditei poder amar alguém." Respondi, encostando-me à amurada da ponte secular.


"E és feliz?" Quis ela saber.


"O amor não existe para nos fazer felizes..." Hesitei, embora decidido a não mentir. "O amor é o lado de dentro da felicidade, mas nunca, nunca nos deixa entrar verdadeiramente, por mais que batamos à porta..."


Ela desenlaçou-se gentilmente do meu corpo, fazendo os seus braços deslizar de forma suave pelos meus, as suas mãos percorrendo de modo macio as minhas mãos até as deixarem suspensas no vácuo da despedida.


Afastou-se como sempre o fazia àquela hora. Era a sua hora de partir. A iluminação pública começava a acender-se, desmoronando as trevas do lusco fusco, trazendo sabe-se lá que hipotéticos malefícios para a sua sombra.


Eu deixei-me ficar longamente debruçado sobre a ponte, depois da silhueta franzina desaparecer numa das inumeras ruelas da cidade. A minha sombra debruçava-se já também pela ponte, observando também a forma como os candeeiros reescreviam o mundo após a partida do sol. A catedral entrava-me pelos olhos dentro como as lágrimas que eu tentava a custo reter, o rio parecia correr para aquele lugar onde eu nunca, nunca conseguiria chegar.


2 comentários:

Passageiro do Tempo disse...

E sabes que mais? Estou sem palavras... absolutamente....

Um grande abraço meu amigo!!!

Anónimo disse...

"O amor é o lado de dentro da felicidade, mas nunca, nunca nos deixa entrar verdadeiramente, por mais que batamos à porta..." - Se as pessoas se entregarem verdadeiramente e de coração aberto vão ver que afinal a porta abre...

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